Compreender o seu lugar no mundo pode ser uma tarefa extremamente desafiadora, especialmente para as mulheres negras. Além das dificuldades do dia a dia, elas enfrentam o machismo e o racismo, discriminações que afetam a compreensão completa de suas identidades e posições na sociedade. Como encontrar a autoaceitação quando o ambiente ao seu redor parece estar constantemente pronto para negá-la?

Esse é um dos pontos debatidos pelo jogo Corage, produzido durante o Game Jam Delas, evento realizado pela instituição sociocultural Cinema Nosso, que busca inserir mulheres no mercado de desenvolvimento de jogos. O game, produzido por uma equipe 100% feminina, tem como protagonista Helena, uma jovem negra que tenta se reinventar no ambiente virtual, onde os caminhos para encontrar uma nova identidade são, teoricamente, mais fáceis e a personagem se distancia de seu verdadeiro “eu”.

Inicialmente, a figura controlada pelos jogadores para encarar os labirintos do game é de uma mulher branca, mas, conforme Helena começa a pensar sobre a sua posição na sociedade, ela finalmente, se percebe como mulher negra, conclusão que reflete na jogabilidade de duas maneiras: os jogadores passam a ver uma mulher negra e os obstáculos se tornam bem mais complexos. A ideia da produção é traduzir como o processo de valorização do público feminino negro é longo, mas é um trabalho necessário e constante.

Se entender no mundo

Outra produção que lida com a ideia de entender o seu espaço no mundo é Molda Mundo, cuja história é de uma criança perdida em uma floresta, que não se reconhece naquele lugar, e ao se olhar, se vê sem forma. Uma das artistas e game designers do jogo, Emanuelly Araujo, lembra que, durante a elaboração do game, a equipe pensou nos diferentes corpos da sociedade, o feminino, o trans, o negro, e tentou criar uma maneira de colocar o jogador em um corpo que não o seu, para vivenciar o cotidiano dessas populações: “Pensamos também no nosso processo de formação enquanto indivíduos e as experiências que nos atravessam, moldadoras de personalidade”.

Emanuelly destacou a importância de iniciativas como o Game Jam Delas: “Eu entendo ser de extrema importância ter uma edição voltada para mulheres, porque o mundo de desenvolvimento de jogos ainda é muito masculino e predominantemente branco. Aqui, a gente encontra um espaço democrático para mulheres negras brilharem da mesma forma, além de termos a presença de mulheres trans também”

Obras foram inspiradas por canção de Luedji Luna

As produções foram inspiradas pela música “Um Corpo no Mundo”, de Ludji Luna, tema proposto para a segunda edição do Game Jam Delas. A ideia era sugerir uma discussão sobre a experiência de ser mulher, apresentar e explorar as dificuldades enfrentadas pelos corpos femininos, cis ou trans, em suas existências.

“Ficamos nos perguntando como seriam esses corpos no meio da área de tecnologia, pois a música toca muito nessa questão, de indagar como essas pessoas vivem no mundo, onde estão as suas necessidades, prazeres e o que elas precisam expressar”

comenta Thaís Xavier, Produtora do Game Jam e Desenvolvedora de jogos.

A iniciativa, além de oferecer oportunidades, também será base para uma pesquisa que visa entender a participação feminina nesse universo. Intitulada “Corpos femininos no mundo dos games”, o objetivo é levantar dados sobre a inserção e qualificação das pessoas no mercado de jogos brasileiros para contribuir com a equidade de gênero e raça no setor. Pessoas que se identificam com o gênero feminino (mulheres cis, trans ou travestis) e pessoas não-binárias acima de 14 anos de idade podem preencher o formulário, que resultará na exposição de um glossário ilustrativo que abordará tecnologia e feminismo.